top of page

Cariri: O paradoxo

Do solo sagrado da Paraíba tento me desconcentrar da realidade para compreender, sob a limitação das palavras e seus adjetivos, o que acabo de vivenciar. Poderia iniciar adentrando a algum espectro físico ou a partir de uma perspectiva íntima, mas acredito que o caminho de maior fidedignidade para aproximar o leitor da mensagem seja a interseção paradoxal entre os mundos subjetivo e real.

Diante disso, dê uma pausa, se possível, procure em sua plataforma habitual de música “Zabé da Loca” e coloque para tocar enquanto lê.

Começo então a ambientar a minha falta de concentração aos contextos observados nos últimos quatro dias, onde conheci, de maneira imersiva, o Cariri paraibano, na doce presença e condução do amado Ronaldo Fraga, no aconchego dos braços de minha mãe Angela, na ilustre companhia de Maitê Proença, na maestria de Hoslany, Thiago, Pablo e Isabel no direcionamento da expedição e no vigoroso brilho de amigos queridos que tornaram a experiência um tanto quanto forte, transformadora e carregada da sublime esperança que paira o meu existir de uma forma altamente intensa para o decorrer da vida.

Como Drummond clareia em “Procura da poesia”, cá estou no reino das palavras em estado de dicionário, observando quais se soltaram do limbo para, enfim, tomarem suas formas, convivi com este texto antes de escrevê-lo, observando, na realidade, a realidade. Esta, por sua vez, solicitando passagem de ida para um universo onde os encontros mais improváveis acontecem como espasmos num sono profundo, quando sonhos transitam com liberdade em nosso corpo. Encontra-se então espaço para um contato com a transcendência ancestral na lúdica Pedra do Ingá, onde não me esforçarei para encontrar o sentido de suas marcações, mas me educarei todos os dias subsequentes para a profundez de minha raiz e de sua conexão inapagável com um Brasil profundamente puro e real, fixa a raiz, a materna mesa de dona Lia, carregada da fartura e da força que salta entre sua história e sua comida nos dando sustento para o decorrer da jornada, aqui a fé me ocorre aos olhos e percebo que seu local não é composto por gatilhos de compra, como na herança traumatizada dos que observam os movimentos que se apossam do termo em nome do negócio, mas na vida. Chego ao tear com respostas para perguntas ainda não feitas e descanso em suas sonoridades enquanto as redes para o descanso são produzidas, prometo não me deitar sem antes lembrar do suor das mãos que lançam, lado a lado, suas ferramentas para o entrelaçar das linhas, daqui ainda me sinto fixo ao capítulo onde o som do mar ecoa de um cacto, na certeza de que o Cariri não vai virar mar, afinal já é oceano. A tarde cai junto das estrelas.

Toda a estética presente no caminho me impressiona por fluir de forma natural entre os pequenos distritos, em suas marcações gráficas e em suas frases dotadas de uma autenticidade jamais presenciada por meus olhos. Em meio à experiência extática, todo o aparato sensorial do curtume se desenha ao calor, a força coletiva impressa no trabalho manual transpassa o forte cheiro exalado pelo processo e toma toda a minha percepção. As ruas que nos levam ao comércio de couro são ásperas a presença humana no horário próximo ao meio dia, a alta temperatura inibe o trânsito de pessoas, prato cheio para gansos, bodes e vacas, que, em minha observação, passeiam livremente em busca de comida e sombra. Ainda sob o sol, um mergulho na memória da gloriosa Roliúde Nordestina, palco de tantas produções do cinema nacional, percorrer seus endereços é andar sobre a história. Olhares atentos de um padre trajado de vestes pretas atraem meus passos, o icônico Zé de Cila, de tantos casos, em sua bodega.

Almoço na sombra de uma linda árvore antes de me lançar sobre o ápice energético de minha experiência, ao poente, cores que os olhos custam a acreditar pintam um céu sobre o Lajedo onde morou Pai Mateus, o silêncio ao cair do astro rei dá voz ao som da terra, ora brisa, ora vento e carrega de paz o ambiente, logo ao nascer das estrelas, uma entrada física ao interior da casa de Pai Mateus - uma rocha sobre o lajedo - em paralelo entro em minha casa e em meu íntimo, a formação da rocha dá a impressão de que ondas na praia quebram ao lado de fora, me encontro com o medo que habita em mim e desperto com o fogo de um meteoro que quebra o silêncio e confirma sinais: tudo por aqui é mesmo forte. É noite.

A trilha sonora proposta ao início do texto toma vida e sentido na manhã onde Zabé da Loca, existencialmente, nos recebe através do braços de Josi, mulher forte e mística, sua afilhada. Um tom de intercessão flui por João de Amélia, um senhor que conduz o canto ao lado da mesa de almoço, sua espiritualidade é disfarçada em seu humor, distribui então a benção da vida e da saúde do auge de seus mais de 80 anos e uma disposição física ímpar demonstrada na condução do caminhar em ritmo de procissão até a Loca, casa de Zabé, no alto de um elevado, onde a literalidade se confunde com a matéria e, por pouco, as vistas não contemplam Zabé com seu Pífano durante a visita. Lágrimas são inevitáveis. Muito me desperta a curiosidade enxergar nuances de fé impressas na vida comum, onde a rotina, o árduo trabalho, as responsabilidades familiares e tudo aquilo que a sobrevivência nos demanda existem e são intensas num alto grau, a relação com a fé se desenha na dependência com o contato transcendente, onde subjetividade e realidade não se diferenciam em minuto algum.

O deleite intelectual servido na fazenda Carnaúba, no dia que sucede a cortante marca que Zabé deixou em meu peito, coroa toda a expedição com uma mesa de comunhão sob a sombra de um umbuzeiro após um mergulho no mundo que é Ariano Suassuna, o acesso é através de seu filho Manu, artista plástico que carrega em seus ombros o humor característico de seu pai. Me conecto com a realidade ao me deparar com a arte, a fé e a vida formando uma tríade na Ilumiara Jaúna, onde Ariano, ao observar seu texto fora dos livros, após longo silêncio, diz: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”, verso de Fernando Pessoa.

O desejo contínuo de permanecer neste sonho é chacoalhado pela necessidade de construir, agora, com o aparato de um sonho lindo chamado Cariri, que a obra nasça, sem pressa, ao passo de quem quis o querer. A vida na cidade chama e não ignoro a voz, porém me vou com a certeza de que nada já é mais como era antes.




Lucas R. Diogo


Roteiro: @que_visu

Direção: @fragaronaldo

Equipe: @hoslany23, @tburiti, @pabloburiti1, Isabel Gomide e tantos outros queridos.



bottom of page